sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

VeraCidade

 

CAVOUCANDO A TERRA

 

                        Wilson Coêlho

 

A obra "Itabapoana Pedra Pássaro Poema ", de Artur Gomes, é toda "poiesis", na perversão dos significados, trata-se de uma poesia no pau-de-arara, confessando intimidades, inventando conceitos, transitando nas peripécias, nos espasmos, no lance de dados.

 

Não é por acaso a ideia do subtítulo ou anunciação de "poesia, alquimia e bruxaria", considerando a poesia,  como gênero literário que faz uso de uma linguagem musical, figurada e criativa para veicular expressões artísticas, bem como, a alquimia dos sentimentos líquidos que escorrem no delírio do poeta que, de certa forma, no que diz respeito à bruxaria, resgata o místico, não religioso, que coloca em questão a possibilidade do óbvio de se estar no mundo, fora da lógica cartesiana, numa viagem Catatau leminskiana.

 

A poesia escrita, encenada, cantada, em movimento, inerte, barulhenta ou silenciosa. É a esfinge, Torre de Babel, Cavalo de Troia, fios de Ariadne, ferocidade de Teseu, sonho de Penélope, aventuras de Odisseu, nave louca de Torquato Neto, Macunaíma de Mário de Andrade, loucura de Artaud, ópio de Baudelaire, pânico de Arrabal.

 

Podemos afirmar, sem medo de errar que, em "Itabapoana Pedra Pássaro Poema", Artur Gomes usa a pena como uma pá que lavra os sulcos de um terreno baldio, a palavra como um arado em movimento, uma palavração. Assim, vai desenhando na página branca, cavoucando a terra para enterrar  as sementes de suas árvores "geniológicas", sempre frutíferas e, como um agricultor e arqueólogo das palavras, as retira da mera condição de semânticas, inventando novos significados, desafinando o coro dos contentes e desafiando a gravidade da lei da gramaticidade.

 

Enfim, em "Itabapoana Pedra Pássaro Poema ", estamos diante de uma desarticulação do mito e num processo de reinvenção, uma porta de entrada na utopia (u-topus = não lugar) para dar existência a um novo lugar da poesia extemporânea.

 

Wilson Coêlho é poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 28 livros publicados, licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES, Doutor em Literatura Comparada pela UFF e Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris, do qual recebeu, em 2013 o diploma de “Commandeur Exquis”.  Assina a direção de 29 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música. Participa de diversos movimentos e eventos de teatro na América Latina. 

Leia mais no blog

https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/



"uma cidade sem memória não é uma cidade"

                   Federico Baudelaire

 

momento de grata felicidade ao lado do grande brother/poeta Salgado Maranhão e da escritora/historiadora Anita Leocádia - registro feito por Lília Diniz por ocasião da 7ª Feira do Livro de São Luís – Maranhão 

conheci Anita Prestes (filha de Luis Carlos Prestes), ao lado do poeta Salgado Maranhão, na 7ª Feira do Livro em São Luis do Maranhão em 2013. Atualmente, por todo o ano de 2024, quando o Golpe de 1964, chega aos seus 60 anos, estou mergulhado numa busca do levantamento da memória dos anos de chumbo 1964/1985.

Tenho assistido a maioria dos depoimentos dados a Comissão Nacional da Memória, por ex presos políticos e agentes das forças de repressão do período. Um dos mais contundentes, dado pelo ex-agente do Doi-Codi do Espírito Santo, o hoje pastor Cláudio Guerra, que narra como os corpos já retirados sem vida da Casa da Morte em Petrópolis e trazidos para serem incinerados nos fornos da Usina Cambaíba. 

Hoje assisti a entrevista de Anita Prestes, no site Tutaméia, https://tutameia.jor.br uma reflexão sobre esse período e o momento histórico do Brasil. Busco o levantamento dessas memórias como fonte de pesquisa para o livro Vampiro Goytacá Canibal Tupinquim, porque apesar de ser um livro de poesia/ficção, entendo que nenhuma ficção nasce do nada, existe sempre pelo menos algum vestígio de uma cruel realidade por detrás dela.

 

Artur Gomes 

leia mais no blog

https://arturgomesgumes.blogspot.com/



eu nasci concreto

depois fui me abstraindo

me substantivando

me substituindo

criando outros e outras criaturas

em minhas estruturas amorais do ser

eu nasci assim

e fui me associando

a outras escritas

as que foram ditas

a outras  não ditas

as benditas

as malditas

e as que disseram minhas

e a outras que raptei de outros

pela minha nova maneira

natural de ter

resistência a toda

qualquer coisa que não

é

e as que são

coloco como cartas

sobre a mesa

para surpresa

de ver que todo dia é dia d

 

  Federico Baudelaire

 

leia mais no blog

https://fulinaimagemfreudelerico.blogspot.com/


empregado do povo

 

se o mundo

não fosse comandado

por babacas

talvez eu fosse poeta

01 sonhador anarquista

01 delirante cantor

propondo revoluções

mas os rumos

q. o mundo toma

não nos permitem

delírios, amores, invenções,

no muito, alguns escorregões

assim sigo de  plantão

batendo ponto e carimbo

como 01 barnabé cagão

 

Aroldo Pereira

In parangolares

Patuá - 2023

 


                          VeraCidade

 

pedra de toque

pedra de rock

veracidade meu bodoque

tem seu preço

na minha idade esta cidade

ainda não conheço

e até hoje

ninguém soube escrever o endereço

desde os tempos

das colônias dos impérios

dos tropeiros dos tropeços

 

Artur Gomes

Itabapoana Pedra Pássaro Poema

leia mais no blog

https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/


mercador de nonadas

 

I

troco palavras pelo que for

palavras tenho aos montes

e as dou ao primeiro

que me oferecer uma flor

e muitas ainda me sobrarão

para lhe dar brilho, volume

e sentido

regada assim posso continuar

reinventando meu jardim

 

Abel Coelho

in parada 88 – poesia

Par&Cia Limitada - 2006 


met/áfora 2

 

não me verás lugar algum enquanto os dentes não forem postos e na mesa tenha espaço para todos. esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do silêncio na boca dos escravizados eu que venho das profundezas desse tempo escuro onde as caras soterradas no asfalto onde os homens de verde/oliva despejavam chumbo sobre nossas palavras. não me verás lugar algum o rosto que em mim verás agora é uma máscara que o tempo se encarregou de moldurar sobre o pescoço.

 

Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux - 2020

leia mais no blog

https://fulinaimacarnavalhagumes.blogspot.com/


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Balbúrdia PoÉtica 5

 

                              transposição

 

na calada do dia

a dor desdorme

em sobressalto

em silêncio convulso

 

se

            desse para ver

            com os olhos alheios

            pudesse crer

           com a fé dos outros

 

calmaria

 

as horas só

contradizem toda

ilusão

 

Rosana Chrispim

In Caderno de Intermitências

Patuá - 217



ave torquato

 

ponto de certeza: um anjo torto/solto ainda sobrevoa/sobrevive em vias de versos & canções estes 40 anos de celebração do tropicalismo. um anjo torquato neto filho nato  de todas as sacações, desfolhando a bandeira da geléia geral  que país anunciou num ritual de cores, canções & atitudes nunca vistas antes. um guerrilheiro que nunca soube  sua hora, mas sabia que todo dia era dia d. em nove de novembro de 44/72 ele veio e se foi. de teresina para o mundo. vidente na tristeresina de um escorpião encravado na sua própria ferida. nada por acaso, cara/coragem no transe de desafinar o coro dos contentes. um pássaro de fogo incendiando o espaço & o hospício. vício de ternura & paixão de arte/vida na totalidade do ser pessoal e intransferível. torquato sem risos nas fotos. torquato nos riscos dos discos em infinitas rotações. de barra. de berro. de birra. de briga com deus & o diabo nesta terra de ninguém. torquato entre outros. naveloucos em única edição. vampiro de plantão no barato das embarcações  dos rios de janeiros e fevereiros carnavalizando & dando o que falar entre toques & notas sem perder o pique e& o charme. colunista de última hora fazendo festa nos fatos & nos agitos. quem leu, viveu. Torquato cogitando a cidade & suas ciladas desencanando caminhos. torquato na véspera do fim  do mundo sabendo/querendo só o que podia dar certo, torquato & cajuína; “existimos a que será que se destina?”

 

Zhô Bertholini

In CURTIDIANO

alpharrabio edições – 2023 



Artur Gomes
Itabapoana Pedra Pássaro Poema 

                                                               por - Renata da Silva de Barcellos (Pós-doutorado em                  

                                                                      Literaturas – CEJLL – NAVE RJ)


Nesta obra intitulada Itabapoana Pedra Pássaro Poema, Artur Gomes possibilita o leitor navegar em diversas áreas do conhecimento: Literaturas: “quando Rachel escreveu quinze meus olhos doeram nos olhos”; Música: “Joilson Bessa me disse Kapiducéu já ensaia Macunaíma vem vindo no Auto do Boi Macutraia” e “misturei meu afro reggae a muito xote do xaxado ainda fiz maracatu maxixe frevo já juntei ao fox trote quando dancei bumba meu boi em pernambuco fulinaíma é punk rock rasgando fados em bossa nova feito blues para pintar a pele branca de vermelho e repintar a pele preta de azuis”. Um verdadeiro passeio por diversos gêneros. Não poderia faltar o samba “do azul/marinho da Portela o verde/rosa da Mangueira”. E Artes plásticas: “levanta natureza morta você não é Cubismo de Picasso nem Surrealismo de Dali diante os cabelos de aço de Frida Calo”.

O poeta utiliza três palavras-resumo: poesia alquimia bruxaria. Essas sintetizam a essência dos seus poemas. De fato, alusões (“helena me deu um cavalo de pau”) e citações (“se foi Cândido Portinari quem pintou as portas de entrada da favela ou se foi Rúbia Querubim”) são “misturadas” ao tom crítico (“só come o pão que o diabo amassou portas sempre fechadas na cara do trabalhador grandes fortunas livres de impostos projeto para aliviar o bolso do povo câmara dos deputados rejeitou”). Dessa forma, surge seu estilo próprio no qual seus textos são ricos em referências, possibilitando o leitor com um bom nível cultural a se deleitar em novas possibilidades estéticas de poesia. Através delas, podemos constatar seu posicionamento político “contra o poder da tirania” como em (“eu sou matéria argamassa armadura permaneço de pé encaro o tempo contra o vento contra a tirania da mordaça nada que eu não faça”).

Uma das características da poesia contemporânea é a experimentação “sem existencialismo cansei dos ismos pós concreto”. Gomes faz diversas alusões ao poeta francês Charles Baudelaire, considerado o pai da poesia moderna, a partir de 1848: “nasci federico DuBoi de Baudelaire da caneta de um poeta que não...”  e a Mallarmé com as experimentações como em Um lance de dados. Na atualidade, compreende-se a língua como “plástica e maleável”, permitindo criações por Gomes como: “A pá-lavra poesia” – “leminsk i Ando”- “se FlorBela ainda vive” e “em carNA val meu olho disse:” Também é marcante a força pela surpresa lexical com neologismos “brasilírica”. Assim, utiliza alquimia para desbravar novas formas de linguagem como em: “ sagarânica” (A palavra Sagarana é um neologismo que une o radical germânico “saga” cujo significado é "canto heroico" ou "lenda", com a palavra tupi “rana”, sentido "que exprime semelhança" e o sufixo "-ica" é um sufixo nominal de origem latina). Essa é uma das marcas desta obra. Observa as palavras para decompô-las como em “primavera” criou “Ana à Vera” a fim de recriar e expressar novos sentidos.

Outra marca da poesia contemporânea é valorização da intertextualidade, um recurso linguístico que já havia sido observado na corrente modernista. Exemplo: que não sou triste um poema ainda existe pra me animar do desconforto para me salvar do entretanto pra me acertar no desconcerto”. Salve, salve Cecília Meirelles!

Faz alusão a fatos históricos para crítica social como a chegada do português (“enquanto na primeira missão galo camões bem galinha chocando o ovo do índio ou pero vais que caminha”) e a Independência do Brasil (“no jantar da quinta da boa vista dois anos depois da independência d pedro não conseguiu engolir abapuru no quartel da realeza Leopoldina”). O poeta conduz seu leitor a refletir sobre diversos acontecimentos também.

Dessa forma, trata-se de uma obra primorosa na qual o autor demonstra o poder de articular diversas áreas do conhecimento. E de um belo exemplo da Poesia Contemporânea. Vale a pena a leitura!!! Sugestão: utilizar em sala de aula para aprimorar o conhecimento de mundo dos alunos. E viva a POESIA CONTEMPORÂNEA!



furai

a pele das partículas dos poemas

viemos das gerações neoabstratas

assistindo a belos filmes de godart

inertes em películas de truffaut

bebendo apocalipses de fellini

em tropicâncer genocidas de terror

 

sangrai a tela realista dos cinemas

na pele experimental do caos-urbano

 

tragai

dali pele entre/ossos

glauber rugindo enTridentes

na língua do veneno o gozo das serpentes

nos frascos insensíveis de isopor

 

caímos no poder do vil orgânico

entramos no curral dos artefatos

na porta de entrada os artifícios

na jaula sem saída os mesmos pratos

 

Artur Gomes

In O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux - 2020



I

ao acordar mamão papaia salpicado de aveia

mel um punhado de uvas-passas sem sementes

três castanhas-do-pará pão francês na chapa

com manteiga café expresso duplo e um triplo

sentimento de culpa pela fome alheia

 

na manhã ainda aqui dentro a tv ligada

para ninguém ensina como aprender a

fazer linguiça e vestidos de crochê e bordados

e como transformar desempregados esfaimados

em empreendedores de sucesso imediato

basta correr atrás de seu sonho diz o coach

 

ao cair da tarde pelas ruas motoristas de

aplicativos transportam encomendas e

gente

motociclistas e ciclistas entregam pizzas

rouco vendedor de brigadeiros no farol apregoa

correm todos atrás do tal sonho empreendedor

sem discernir exatamente o que seja isso

 

à noite em camas insalubres quando as há os

fodidos mal pagos e endividados entregam-se

ao sono da exaustão e confusamente sonham

sonhos impostos e alheios

                               acreditando-os seus

 

dalila teles veras

in opções para morrer no espaço

patuá - 2024


 Dádiva

 

Amo as palavras

que resistem à força

diabólica do tempo,

secam as garrafas de vinhos nobres.

Estranhas criaturas de fúrias e carícias

Me invadem poros e narinas, as palavras.

 

Levo nas unhas o sangue e a pele

Das metáforas dilaceradas.

O esquecimento é dádiva negada.

Mortifico-me buscando cheiros,

sabores, desenhos, sensações,

a palavra que sedimentará o verso.

 

Amo as palavras

que emprestam o grito à dor

o calor à paixão

a vida às imagens mortas e frias.

Torno-me eterna

artesã que não descansa a mão

não sossega a memória.

 

Vigio dia a pós dia,

amamento palavras exiladas

chegadas

sinuosas e em desespero

que encontram seu lugar

no tear de emoções

e descansam no poema.

O futuro é infinito recomeço.

 

Jurema Barreto de Souza

In SILÊNCIO ESCRITO

             e outros poemas

 

alfarrábio edições

a cigarra edições - 2024



a novidade foi quando ela lustrou seus olhos e calmamente aproximou-se do abismo, com um riso vago no rosto e uma sentença nas mãos, e sem vacilo anunciou, daqui me vou, e foi. suas asas foram recolhidas por turistas encantados com a aventura na exuberante paisagem.

*

a noite não cala as intenções. nem tudo dorme. o céu voa em múltiplas direções. os astros  dispersam-se e cada qual carrega sua própria luz. observados, os mistérios causam espantos e encantos e permanecem regentes da maravilha celestial. não há refúgio para tanta imensidão.

 

Zhô Bertholini

In Sol Postiço

alpharrabio edições –

 a cigarra edições - 2021 - 



É muito difícil manter-se em silêncio quando se está estraçalhado por dentro, quando se está gritando por dentro. Mas é preferível o silêncio, em certas circunstâncias, do que um gesto impensado, que espalhe pela relva um incêndio desnecessário. A serenidade não é uma conquista fácil. Quem sabe o tempo, a paciente persistência e a atitude correta se tornem aliados. De qualquer forma, depois do inverno vem a primavera e dos galhos que não se quebraram florescem flores vivas novamente.

 

                          Ademir Assunção


poema

 

o poema pode ser  um beijo em tua boca a orelha de Van Gog bandeirinhas de Volpi os rabiscos de Miró  o assassinato de Lorca o poema pode ser  o que vai o que não fica Lupicínio na Mangueira Noel Rosa na Portela uma jangada de velas um parangolé do Oiticica o poema pode ser os meus músculos de ossos a minha pele de sangue a morte ancestral em cada mangue e os negros nervos de aço estraçalhados em Martinica o bombardeio de Guernica o cubismo de Picasso

 

Artur Gomes

In O Homem Com A Flor Na Boca

Editora Patuá – 2023 


discípulo de rimbaud

minha tv pifou nem tenho ido ao cinema meu filme está carne da palavra esse poema é trágico me lembra infância lá na cacomanga televisão nunca tivemos era rádio de pilha depois de bateria meu pai criava porcos para vender na primavera e complementar o seu salário que nem o mínimo era carteira de trabalho nunca teve
como administrador de uma fazenda com mais de 1000 alqueires de terra com produção agropecuária canavieira e cerâmica industrial (usina de moer gente) esse é um poema em linha reta nem sei por quê e para que me tornei poeta discípulo de rimbaud talvez só para escrever que no brasil mesmo depois da abolição escravidão nunca terminou

 

Pastor de Andrade

In  Vampiro Goytacá – Canibal Tupiniquim –

Previsão de lançamento – 2025 


me arrepio

dos pés dos cabelos

aos pelos da película

da medula

quando ouço

uma jura secreta

na boca do poeta

com sua língua

fornalha

faz tempo muito tempo

desde a sua carNAvalha

que o meu rio se estremece

           e aí eu rogo em prece

que o meu corpo ainda valha

     uma palavra no teu cio

 

                         Irina Serafina

leia mais no blog

https://ciadesafiodeteatro.blogspot.com/


 VeraCidade

 

pedra de toque

pedra de rock

veracidade meu bodoque

tem seu preço

na minha idade esta cidade

ainda não conheço

ninguém sabe escrever o endereço

desde os tempos

das colônias dos impérios

dos tropeiros dos tropeços

 

irina passeia à beira mar vestida de maresia beija no vento o sal do suor da pele nua quando senta na pedra do sossego gozando a liberdade de ser unicamente sua

 

                                     Artur Gomes

 

surucabano

 

chiriquela gata magrela

com sua boca da guesa

me pergunta da janela

por sua mãe portuguesa

dandara a psicopata

de família  irlandesa

traiu a confidência de zapatta

no carnaval pernambucano

matou o pai numa  gravata

e se alistou no exército mexicano

 

                        Federika Lispector

 

leia mais no blog

Itabapoana Pedra Pássaro Poema

https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/

balbúrdias em terras plácidas

...

abri as cortinas ainda agora

e eis que vem o meu país desembestado,

na penumbra, perdido de rumos...

bêbado, de ignorâncias e de maluquices,

tropeça nas calçadas, dá com a cabeça em postes

e sangra...

em que além de horizontes se perdeu o equilíbrio,

a vergonha, a coragem, a verdade, a cura...?

por que me abate em pesadelo,

o tempo que sonhei claridade?

pela janela que a mim abre,

conclamo um balde,

antes que muito tarde.

 

Joaquim Celso Freire


Jura Secreta 35

 pontal.foto.grafia 

Aqui, 
redes em pânico pescam 
esqueletos no mar 
- esquadras - descobrimento 
espinhas de peixe convento - 
cabrálias esperas relento - 
escamas secas no prato 
e um cheiro podre no 
AR 

caranguejos explodem

mangues em pólvora 
Ovo de Colombo quebrado 
areia branca inferno livre 
Rimbaud - África virgem 
carne na cruz dos escombros 
trapos balançam varais 
telhados bóiam nas ondas 
tijolos afundando náufragos 
último suspiro da bomba 
na boca incerta da barra 
esgoto fétido do mundo 
grafando lentes na marra 
imagens daqui saqueadas 

Jerusalém pagã visitada 
- Atafona.Pontal.Grussaí - 
as crianças são testemunhas: 
Jesus Cristo não passou por aqui 

Miles Davis fisgou na agulha 
Oscar no foco de palha 
cobra de vidro sangue na fagulha 
carne de peixe maracangalha 
que mar eu bebo na telha 
que a minha língua não tralha? 

penúltima dose de pólvora 
palmeira subindo a maralha 
punhal trincheira na trilha 
cortando o pano a navalha 

- fatal daqui Pernambuco 
Atafona.Pontal. Grussaí - 
as crianças são testemunhas : 
Mallarmé passou por aqui. 

bebo teu fato em fogo 
punhal na ova do bar 
palhoças ao sol fevereiro 
aluga-se teu brejo no mar 
o preço nem Deus nem sabre 
sementes de bagre no porto 
a porca no sujo quintal 
plástico de lixo nos mangues 
que mar eu bebo afinal? 

 

Artur Gomes

do livro Juras Secretas

Editora Penalux – 2018

https://braziliricapereira.blogspot.com/


        Assembléia Geral e Irrestrita

 

De caráter urgentíssimo Federika Lispector convocou uma assembléia conjunta entre a Mocidade Independente de Padre Oliváco – A Escola De Samba Oculta No Inconsciente Coletivo e a cúpula diretora da Igreja Universal do Reino de Zeus, para tornar público resultado da pesquisa de Pastor de Andrade nas cidades de Alombradado e Cu-deburro, sobre crimes eleitorais praticados mas eleições municipais de 2024, e ao mesmo tempo oficializar o noivado de Marcelo Brettas e Rúbia Querubim, que possivelmente se dará no lançamento do livro Vampiro Goytacá Canibal Tupiniquim marcado para 2025.

 

Irina Severina

leia mais no blog

https://fulinaimicamente.blogspot.com/


                              testamento

 

a tesoura rasga o tecido da carne

enquanto sangra

no processo cirúrgico do poema

corta de cada palavra a sílaba

que não presta

de cada frase a palavra

de cada sílaba a letra morfa

e o poeta vai vivendo no que resta

 

Artur Gomes

Pátria A(r )mada

Desconcertos Editora - 2022



                             SEM MAIS

 

o boteco esvaziou

a rua silenciou

a lua se escondeu

o sol nem ascendeu

um dia a semente brota

talvez

outro dia um jardim floresce

talvez

mas o poema se mudou

mas as lágrimas não secaram

mas os sorrisos se engoliram

e todo amigo se calou

“a palavra já não fala

a palavra falha”

a falta dói

a distância salta

e o abraço já não aperta

a cortina cedeu e se fechou

e lá de longe

uma mão cerrada

insiste

sorriam

sigam

mas 

“com o dedo sempre em riste”

 

(aspas de Rubens Jardim)

 

MÁXIMO RESPEITO

vagou por aí

pelas ruas dessa cidade

gerado no morro

em periferia qualquer

um ser entidade

soma de tantas

nobre senhor

que pra dentro sorria

preferia os cantos

e parcas palavras

o olhar era vago

centrado no todo

ser lume

com brilho de estrela

clareando encruzilhadas

com sua conversa mansa

saciando a fome de pobres e de prosas

odiando a poesia com amor e revolta

insolente nem homem nem mulher

daqui, de Angola ou Jamaica

cruzou todos os becos e botecos

serviu banquetes de palavras

lutou ao lado de santos e demônios

e combateu cada um deles

honrou a cor de sua pele

resgatou os ancestrais

e mais

esparramou sementes

na maloca e no terreiro

e até no planalto lá do centro

do nada ou das mentes

partiu sem adeus

no mais completo silêncio

repetindo apenas

não passo de um maloqueiro

se é assim

seja como queira

mas sua cuíca fica

e chora

 

Marcelo Brettas: Jornalista, editor, romancista, cronista, contista e poeta, já editou mais de mil publicações periódicas e conquistou prêmios importantes do jornalismo brasileiro atuando em diversos veículos de comunicação, como: TV Cultura, Estadão, Folha de São Paulo, Quatro Rodas, Superinteressante, Você S/A, Alfa, Playboy, Veja e Men’s Health. Escreveu ainda para jornais e revistas de diferentes países e hoje é colaborador do Jornal Tornado, de Portugal. Como escritor participou de dezenas de antologias e tem diversos livros publicados, entre eles: Rua Qualquer, Sem Número (com prefácio do Pe. Julio Lancellotti e premiado pelo ProAC); Tô Levitando e Florestas Imaginárias 

        Selvagem

" enterrem meu coração

na curva do rio"

 

peço

como pediu um índio

que, estrangeiro,

sabia falar a língua

da minha flauta alma,

índia que sou,

selvagem

Se as pernas cruzo

social,

em vernissagens,

a alma é acocorada,

ouvido alerta

para os ruídos

quase nada

de uma selva

em que, matreiro,

o inimigo surja.

Se, requintada,

canapés mordisco,

Dama da Corte,

a alma antropofagicamente,

rosna

o seu pedaço de caça.

Bebo na concha

das mãos

água riacho

quando levemente

seguro a taça

em que me servem

a mesma água.

O banho perfumado

em sabonete e shampoos,

é, apenas,

o verniz

que descascado,

desvenda o banho,

que, em meu rio,

limpo o corpo

com folhas

e flores abertas

madrugadas.

Jamais estive grávida,

mas prenhe;

nunca me nasceram filhos,

os pari,

quando meu grito

primevo

se fez soluço

ao agarrá-los,

fera,

e lambê-los

crias, curumins.

Cheiro, disfarçada,

o ar desses salões

e o meu faro

é faro de onça

na espreita

do perigo,

como só índio

e animal

sabem espreitar.

Meu grito de guerra

ecôa no silêncio,

se palavra cambaia

agride a minha

escuta

e não confundo

doce, àquela que amarga,

mesmo que enfeitada

em pétala de flor.

Sei exatamente

o curso do meu rio,

guia seguro,

mateiro,

meu irmão,

que me levará

a salvo

à clareira

em que adormeço.

Por isso peço:

"enterrem meu coração

na curva do rio".

E meu rio

é esse Paraíba

que se disfarça civilizado,

já que, em cidade corre,

mas que é,

como todo rio,

o que desliza na selva

em que algum dia

nasci.

Lucia Miners

                    Fé no Evoé:

Confissões dionisíacas na poética e política de Artur Gomes 

Igor Fagundes * 

Depois das excitadas e excitantes Juras secretas, de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio em O poeta enquanto coisa, de 2019, incorporando as ébrias forças de Baco sob novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa contemporaneidade que avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do mítico da palavra corpórea e originária. Comparece ao ethos deste livro a mesma embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida, rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo. Que, em prefácio, ressoe agora-aqui a face mesma de assonâncias de Artur. Que em pré-faces (a da melopeia, a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente, por assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e aliterações – seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e anúncio: incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte vulva em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e Hermes.

       Que o veraz poeta, para aquém do denominado moderno, para além do já clichê pós-moderno, para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas literárias teorias, atravessa o pós-pós de tudo e mesmo o pó da historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo (tão dentro quanto fora do chronos) na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória: “e a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos meus estados de surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo cronológico (“tempo de bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para fundar o Aion sem fundo do instante-em-transe da experiência artística. Por isso, não basta citar, em cacoete analítico, os tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar modernismos influentes, a geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para entender sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste preâmbulo, as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas todas, do encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado e presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido de fogo fátuo e frios fatos.

Artur Gomes – assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras não mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e decompõem sua literaturavida. Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos instauram cutículas.

Tais intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção com que se concentram em cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as certidões de casamento com as leituras/releituras de livros, bem como com o folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que servem como impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria possível – nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em gozo sináptico, em psiké-análise, em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente credo.

Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano / tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal, Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos versos:  aqui / a poesia pulsa / na veia / no vinho”; por vinho tinto e poesia”; ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto – vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos significantes e dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua), ratificando a inteligência verbal (a logopeia) de Artur Gomes dobrada em melopeia (música) e fanopeia (imagética). Visualidade provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos significantes, mas visualidade ou imagem do próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).

Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O poeta enquanto coisa, é corpo sensualizado, sexualizado, da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e o Tempo são Eros, vez que a palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes). Nessa porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre pelos / minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de tamanho contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer – tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como cantor, como ator na divina língua de Baco”, a qual se exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e da palavra “coxa”: uma é a que beija, lambe, morde e degusta; outra é a beijada, a lambida, a mordida, a degustada. Ambas em rima toante também entoam ritmos e ritos profanos-sagrados:

o poema fala do teu corpo
como se o tocasse 
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca 
como um canto bíblico
com louvor profano 

Nessa performance e performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um erotismo entre o significante e o significado, sim, mas também entre página e palco, palco e praça, praça e povo, a babel dos povos e a babel das palavras: daí, tantos trocadilhos (troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flór do lótus” com a “flor do lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o do “fauno” com a “flauta”, o da “alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese” com a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a verbal, mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa. Eis o poeta trocando com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta, analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a exemplo do diálogo poético de Clarice com Baudelaire. Mais ainda: o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema “Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética” permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)” se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade do corpo se troca e vira o corpo da cidade. Assim, o poeta é – quando e enquanto coisa.

No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas (como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé, Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce, escritores também engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce).  Do mesmo modo, não havendo menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura ocidental de outras culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente políticas.

Se Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente falta de lógica, lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de sexualidade e sensualidade em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto que se vê fragmentado e devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito-objeto já não dá conta quando o humano se vê coisa (não mais agente ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo tempo). Como no Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é lamacenta, cheia de líquidos e delírios: a seiva se expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora, é a cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem, acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página.

Por outro lado, temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade com Ulisses de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro, divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista quando jovem”, vinda de Joyce. Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce), personagem que vai aparecer novamente em Ulysses. A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão. Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.

Assim, Artur Gomes se obstina pela ideia de confissão, mas de uma confissão dionisíaca. Primeiro, fazendo suas Juras Secretas, suas confidências sensuais, sexuais, eróticas, fulinaímicas. Em suma, suas sagaranagens (há algo de Joyce em Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há em Artur Gomes, no sagarana dos três). Agora, em O poeta enquanto coisa, arriscando-se a abandonar todo credo político-religioso paralisante, move-se – avesso ao dogmático – no sentido de dançar o mitopoético, o dionisíaco. Daí, uma Igreja Universal do Reino Zeus faça todo sentido na cosmogonia e teogonia de Artur Gomes. Em primeiro lugar, como deboche diante de quaisquer fundamentalismos. Em segundo lugar, como denúncia do que um Reino de Deus pode roubar do político o vigor do poético, preferindo um louvor a Dionísio a um Deus que não sabe dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma poesia que roga

 

por um poema 
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus 
da tua boca

arranhe os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor

assumo o risco
não sou demo
nem corisco 
eu sou cantor

Iansã é quem me lava
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda


eu sou o que invoca 
o que provoca 
e incorpora 
desconcentra 
desconforta 
desconstrói 
e desconcerta

eu sou o que interpreta representa 
o que inventa 
e desafora

o Anjo Torto 
graças a Zeus 
a pedra e ao Machado de Xangô

 

a Capitã do Mato Caipora 
me xinga de poeta enganador 
mal sabe ela 

que eu sou da reza 
que o homem que se preza

nunca se escraviza 
com chicote de feitor

 

*Igor Fagundes é poeta, ensaísta, doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, dentre outros, de pensamento dança (2018) e Poética na incorporação (2016). Macumbança (2020)

Balbúrdia PoÉtica 5

Balbúrdia PoÉtica 5 Dia 5 – Abril – 16h na Academia Campista de Letras Parque Dr. Nilo Peçanha – Jardim São  Benedito – Campos dos Goy...