transposição
na calada do dia
a dor desdorme
em sobressalto
em silêncio convulso
se
desse para
ver
com os olhos
alheios
pudesse crer
com a fé dos
outros
calmaria
as horas só
contradizem toda
ilusão
Rosana Chrispim
In Caderno de Intermitências
Patuá - 217

ave torquato
ponto de certeza: um anjo torto/solto ainda sobrevoa/sobrevive
em vias de versos & canções estes 40 anos de celebração do tropicalismo. um
anjo torquato neto filho nato de todas
as sacações, desfolhando a bandeira da geléia geral que país anunciou num ritual de cores, canções
& atitudes nunca vistas antes. um guerrilheiro que nunca soube sua hora, mas sabia que todo dia era dia d. em
nove de novembro de 44/72 ele veio e se foi. de teresina para o mundo. vidente na
tristeresina de um escorpião encravado na sua própria ferida. nada por acaso,
cara/coragem no transe de desafinar o coro dos contentes. um pássaro de fogo incendiando
o espaço & o hospício. vício de ternura & paixão de arte/vida na
totalidade do ser pessoal e intransferível. torquato sem risos nas fotos. torquato
nos riscos dos discos em infinitas rotações. de barra. de berro. de birra. de briga
com deus & o diabo nesta terra de ninguém. torquato entre outros. naveloucos
em única edição. vampiro de plantão no barato das embarcações dos rios de janeiros e fevereiros carnavalizando
& dando o que falar entre toques & notas sem perder o pique e& o
charme. colunista de última hora fazendo festa nos fatos & nos agitos. quem
leu, viveu. Torquato cogitando a cidade & suas ciladas desencanando
caminhos. torquato na véspera do fim do
mundo sabendo/querendo só o que podia dar certo, torquato & cajuína; “existimos
a que será que se destina?”
Zhô Bertholini
In CURTIDIANO
alpharrabio edições – 2023

Artur Gomes
Itabapoana Pedra Pássaro Poema
por - Renata da Silva de Barcellos (Pós-doutorado em
Literaturas – CEJLL – NAVE RJ)
Nesta obra intitulada Itabapoana Pedra Pássaro Poema, Artur
Gomes possibilita o leitor navegar
em diversas áreas do conhecimento: Literaturas:
“quando Rachel escreveu quinze meus olhos doeram nos olhos”; Música: “Joilson Bessa me disse
Kapiducéu já ensaia Macunaíma vem vindo no Auto do Boi Macutraia” e “misturei
meu afro reggae a muito xote do xaxado ainda fiz maracatu maxixe frevo já
juntei ao fox trote quando dancei bumba meu boi em pernambuco fulinaíma é punk
rock rasgando fados em bossa nova feito blues para pintar a pele branca de
vermelho e repintar a pele preta de azuis”. Um verdadeiro passeio por diversos
gêneros. Não poderia faltar o samba “do azul/marinho da Portela o verde/rosa da
Mangueira”. E Artes plásticas:
“levanta natureza morta você não é Cubismo de Picasso nem Surrealismo de Dali
diante os cabelos de aço de Frida Calo”.
O poeta utiliza três palavras-resumo: poesia alquimia bruxaria. Essas
sintetizam a essência dos seus poemas. De fato, alusões (“helena me deu um cavalo de pau”) e citações (“se foi Cândido Portinari quem pintou as portas de
entrada da favela ou se foi Rúbia Querubim”) são “misturadas” ao tom crítico
(“só come o pão que o diabo amassou portas sempre fechadas na cara do
trabalhador grandes fortunas livres de impostos projeto para aliviar o bolso do
povo câmara dos deputados rejeitou”). Dessa forma, surge seu estilo próprio no
qual seus textos são ricos em referências, possibilitando o leitor com um bom
nível cultural a se deleitar em novas possibilidades estéticas de poesia.
Através delas, podemos constatar seu posicionamento político “contra o poder da
tirania” como em (“eu sou matéria argamassa armadura permaneço de pé encaro o
tempo contra o vento contra a tirania da mordaça nada que eu não faça”).
Uma das características da poesia
contemporânea é a experimentação “sem existencialismo cansei dos ismos pós
concreto”. Gomes faz diversas alusões ao poeta francês Charles Baudelaire, considerado o
pai da poesia
moderna, a partir de 1848: “nasci federico DuBoi de Baudelaire da
caneta de um poeta que não...” e a
Mallarmé com as experimentações como em Um lance de dados. Na atualidade, compreende-se a língua como
“plástica e maleável”, permitindo criações por Gomes como: “A pá-lavra poesia”
– “leminsk i Ando”- “se FlorBela ainda vive” e “em carNA val meu olho disse:”
Também é marcante a força pela surpresa lexical com neologismos “brasilírica”.
Assim, utiliza alquimia para desbravar novas formas de linguagem como em: “
sagarânica” (A
palavra Sagarana é um neologismo que une o radical germânico “saga” cujo
significado é "canto heroico" ou "lenda", com a palavra
tupi “rana”, sentido "que exprime semelhança" e o sufixo
"-ica" é um sufixo nominal de origem latina). Essa é uma das
marcas desta obra. Observa as palavras para decompô-las como em “primavera”
criou “Ana à Vera” a fim de recriar e expressar novos sentidos.
Outra
marca da poesia contemporânea é valorização da intertextualidade, um
recurso linguístico que já havia sido observado na corrente modernista.
Exemplo: “que
não sou triste um poema ainda existe pra me animar do desconforto para me
salvar do entretanto pra me acertar no desconcerto”. Salve, salve Cecília
Meirelles!
Faz
alusão a fatos históricos para crítica social como a chegada do português
(“enquanto na primeira missão galo camões bem galinha chocando o ovo do índio
ou pero vais que caminha”) e a Independência do Brasil (“no jantar da quinta da
boa vista dois anos depois da independência d pedro não conseguiu engolir
abapuru no quartel da realeza Leopoldina”). O poeta conduz seu leitor a
refletir sobre diversos acontecimentos também.
Dessa
forma, trata-se de uma obra primorosa na qual o autor demonstra o poder de
articular diversas áreas do conhecimento. E de um belo exemplo da Poesia
Contemporânea. Vale a pena a leitura!!! Sugestão: utilizar em sala de aula para
aprimorar o conhecimento de mundo dos alunos. E viva a POESIA CONTEMPORÂNEA!

furai
a pele das partículas dos poemas
viemos das gerações neoabstratas
assistindo a belos filmes de godart
inertes em películas de truffaut
bebendo apocalipses de fellini
em tropicâncer genocidas de terror
sangrai a tela realista dos cinemas
na pele experimental do caos-urbano
tragai
dali pele entre/ossos
glauber rugindo enTridentes
na língua do veneno o gozo das serpentes
nos frascos insensíveis de isopor
caímos no poder do vil orgânico
entramos no curral dos artefatos
na porta de entrada os artifícios
na jaula sem saída os mesmos pratos
Artur Gomes
In O Poeta Enquanto Coisa
Editora Penalux - 2020

I
ao acordar mamão papaia salpicado de aveia
mel um punhado de uvas-passas sem sementes
três castanhas-do-pará pão francês na chapa
com manteiga café expresso duplo e um triplo
sentimento de culpa pela fome alheia
na manhã ainda aqui dentro a tv ligada
para ninguém ensina como aprender a
fazer linguiça e vestidos de crochê e bordados
e como transformar desempregados esfaimados
em empreendedores de sucesso imediato
basta correr atrás de seu sonho diz o coach
ao cair da tarde pelas ruas motoristas de
aplicativos transportam encomendas e
gente
motociclistas e ciclistas entregam pizzas
rouco vendedor de brigadeiros no farol apregoa
correm todos atrás do tal sonho empreendedor
sem discernir exatamente o que seja isso
à noite em camas insalubres quando as há os
fodidos mal pagos e endividados entregam-se
ao sono da exaustão e confusamente sonham
sonhos impostos e alheios
acreditando-os seus
dalila teles veras
in opções para morrer no espaço
patuá - 2024

Dádiva
Amo as palavras
que resistem à força
diabólica do tempo,
secam as garrafas de vinhos nobres.
Estranhas criaturas de fúrias e carícias
Me invadem poros e narinas, as palavras.
Levo nas unhas o sangue e a pele
Das metáforas dilaceradas.
O esquecimento é dádiva negada.
Mortifico-me buscando cheiros,
sabores, desenhos, sensações,
a palavra que sedimentará o verso.
Amo as palavras
que emprestam o grito à dor
o calor à paixão
a vida às imagens mortas e frias.
Torno-me eterna
artesã que não descansa a mão
não sossega a memória.
Vigio dia a pós dia,
amamento palavras exiladas
chegadas
sinuosas e em desespero
que encontram seu lugar
no tear de emoções
e descansam no poema.
O futuro é infinito recomeço.
Jurema Barreto de Souza
In SILÊNCIO ESCRITO
e outros
poemas
alfarrábio edições
a cigarra edições - 2024

a novidade foi quando ela lustrou seus olhos e calmamente
aproximou-se do abismo, com um riso vago no rosto e uma sentença nas mãos, e
sem vacilo anunciou, daqui me vou, e foi. suas asas foram recolhidas por
turistas encantados com a aventura na exuberante paisagem.
*
a noite não cala as intenções. nem tudo dorme. o céu voa em
múltiplas direções. os astros dispersam-se
e cada qual carrega sua própria luz. observados, os mistérios causam espantos e
encantos e permanecem regentes da maravilha celestial. não há refúgio para
tanta imensidão.
Zhô Bertholini
In Sol Postiço
alpharrabio edições –
a cigarra edições - 2021
-
É muito difícil manter-se em silêncio quando se está
estraçalhado por dentro, quando se está gritando por dentro. Mas é preferível o
silêncio, em certas circunstâncias, do que um gesto impensado, que espalhe pela
relva um incêndio desnecessário. A serenidade não é uma conquista fácil. Quem
sabe o tempo, a paciente persistência e a atitude correta se tornem aliados. De
qualquer forma, depois do inverno vem a primavera e dos galhos que não se
quebraram florescem flores vivas novamente.
Ademir Assunção
poema
o poema pode ser um
beijo em tua boca a orelha de Van Gog bandeirinhas de Volpi os rabiscos de Miró
o assassinato de Lorca o poema pode ser o que vai o que não fica Lupicínio na
Mangueira Noel Rosa na Portela uma jangada de velas um parangolé do Oiticica o
poema pode ser os meus músculos de ossos a minha pele de sangue a morte
ancestral em cada mangue e os negros nervos de aço estraçalhados em Martinica o
bombardeio de Guernica o cubismo de Picasso
Artur Gomes
In O Homem Com A Flor Na Boca
Editora Patuá – 2023
discípulo de rimbaud
minha tv pifou nem tenho ido ao
cinema meu filme está carne da palavra
esse poema é trágico me lembra infância lá na cacomanga televisão nunca tivemos era rádio de pilha depois de bateria meu pai criava porcos para vender
na primavera e complementar o seu salário
que nem o mínimo era carteira de trabalho nunca teve
como administrador de uma fazenda com mais de 1000 alqueires de terra com produção agropecuária canavieira e cerâmica industrial (usina de moer
gente) esse é um poema em linha reta nem sei por quê e para que me tornei poeta discípulo de rimbaud talvez só para
escrever que no brasil mesmo depois da
abolição escravidão nunca terminou
Pastor de Andrade
In Vampiro
Goytacá – Canibal Tupiniquim –
Previsão de lançamento – 2025

me arrepio
dos pés dos cabelos
aos pelos da película
da medula
quando ouço
uma jura secreta
na boca do poeta
com sua língua
fornalha
faz tempo muito tempo
desde a sua carNAvalha
que o meu rio se estremece
e aí eu rogo
em prece
que o meu corpo ainda valha
uma palavra no teu
cio
Irina Serafina
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https://ciadesafiodeteatro.blogspot.com/

VeraCidade
pedra de toque
pedra de rock
veracidade meu bodoque
tem seu preço
na minha idade esta cidade
ainda não conheço
ninguém sabe escrever o endereço
desde os tempos
das colônias dos impérios
dos tropeiros dos tropeços
irina passeia à beira mar vestida de maresia beija no vento o sal do suor da pele nua quando senta na pedra do sossego gozando a liberdade de ser unicamente sua
Artur Gomes
surucabano
chiriquela gata magrela
com sua boca da guesa
me pergunta da janela
por sua mãe portuguesa
dandara a psicopata
de família irlandesa
traiu a confidência de zapatta
no carnaval pernambucano
matou o pai numa gravata
e se alistou no exército mexicano
Federika Lispector
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Itabapoana Pedra Pássaro Poema
https://coletivomacunaimadecultura.blogspot.com/
na curva do rio"
peço
como pediu um índio
que, estrangeiro,
sabia falar a língua
da minha flauta alma,
índia que sou,
selvagem
Se as pernas cruzo
social,
em vernissagens,
a alma é acocorada,
ouvido alerta
para os ruídos
quase nada
de uma selva
em que, matreiro,
o inimigo surja.
Se, requintada,
canapés mordisco,
Dama da Corte,
a alma antropofagicamente,
rosna
o seu pedaço de caça.
Bebo na concha
das mãos
água riacho
quando levemente
seguro a taça
em que me servem
a mesma água.
O banho perfumado
em sabonete e shampoos,
é, apenas,
o verniz
que descascado,
desvenda o banho,
que, em meu rio,
limpo o corpo
com folhas
e flores abertas
madrugadas.
Jamais estive grávida,
mas prenhe;
nunca me nasceram filhos,
os pari,
quando meu grito
primevo
se fez soluço
ao agarrá-los,
fera,
e lambê-los
crias, curumins.
Cheiro, disfarçada,
o ar desses salões
e o meu faro
é faro de onça
na espreita
do perigo,
como só índio
e animal
sabem espreitar.
Meu grito de guerra
ecôa no silêncio,
se palavra cambaia
agride a minha
escuta
e não confundo
doce, àquela que amarga,
mesmo que enfeitada
em pétala de flor.
Sei exatamente
o curso do meu rio,
guia seguro,
mateiro,
meu irmão,
que me levará
a salvo
à clareira
em que adormeço.
Por isso peço:
"enterrem meu coração
na curva do rio".
E meu rio
é esse Paraíba
que se disfarça civilizado,
já que, em cidade corre,
mas que é,
como todo rio,
o que desliza na selva
em que algum dia
nasci.
Lucia Miners
Fé no Evoé:
Confissões dionisíacas na poética e
política de Artur Gomes
Igor
Fagundes *
Depois
das excitadas e excitantes Juras secretas,
de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua
jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio em O poeta enquanto coisa, de 2019, incorporando as ébrias forças
de Baco sob novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa
contemporaneidade que avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do
mítico da palavra corpórea e originária. Comparece ao ethos deste livro a
mesma embriaguez fulinaímica de
sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser
e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de,
em contrapartida, rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas
turvas do mundo. Que, em prefácio, ressoe agora-aqui a face mesma de
assonâncias de Artur. Que em pré-faces (a da melopeia, a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente, por
assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo
venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas
pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e aliterações
– seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e anúncio:
incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a
curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte
vulva em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e
Hermes.
Que o veraz poeta, para aquém do
denominado moderno, para além do já clichê pós-moderno, para quem dos rótulos e
taxonomias previstas pelas literárias teorias, atravessa o pós-pós de tudo e mesmo o pó da
historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo (tão dentro
quanto fora do chronos) na
atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória: “e
a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos meus estados de
surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo cronológico (“tempo de
bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e
século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do
silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para
fundar o Aion sem fundo do instante-em-transe da
experiência artística. Por isso, não basta citar, em cacoete analítico, os
tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar modernismos influentes, a
geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para entender
sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste preâmbulo,
as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas todas, do
encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado e
presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua
errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do
real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for
líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido
de fogo fátuo e frios fatos.
Artur
Gomes
– assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras
não mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e
decompõem sua literaturavida.
Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os
nervos de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um
rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e
nos dedos instauram cutículas.
Tais
intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam
pela obra na mesma proporção com que se concentram em cada poema, lado a lado
ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as certidões de batismo e, em
poligamia, proliferando as certidões de casamento com as leituras/releituras de
livros, bem como com o folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do
desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes de residência, de
pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda
labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que
servem como impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade
fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria possível –
nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma
outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em
gozo sináptico, em psiké-análise,
em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã
do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também
um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre
sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos
muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente
credo.
Esta,
a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado enquanto
humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano / tem muito
mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal, Dionísio dança na
recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos versos: “aqui / a poesia pulsa / na veia / no vinho”; “por vinho tinto e poesia”; “ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas
bocas tinto – vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do
vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos vinhedos de Baco / no
ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos significantes e
dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu
de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”)
quanto a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre
paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua),
ratificando a inteligência verbal (a logopeia)
de Artur Gomes dobrada em melopeia
(música) e fanopeia (imagética).
Visualidade provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos
significantes, mas visualidade ou imagem do próprio significante, o qual,
dentro de si, dá à luz significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite,
“BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia”
– é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).
Não
apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se sexualiza sob a força
cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O
poeta enquanto coisa, é corpo sensualizado, sexualizado, da mesma
maneira que a cidade, o mundo, os tempos e o Tempo são Eros, vez que a
palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e
frequentes em Artur Gomes). Nessa porosidade, o poeta se entende
permeável a coisas e pessoas (a pessoas já misturadas às coisas, a pessoas já
coisas): “por entre poros entre pelos / minhas unhas tuas costas”.
Também por isso, por essa poesia de tamanho contato, fricção, a relação com a
língua se confirma erotizada e – vale dizer – tanto a língua física quanto a
verbal, o que equivale a dizer que escrita e oralidade se reencontram no poeta:
a sofisticação da escritura literária não perde (pelo contrário, potencializa)
a dimensão primigênia do poeta como cantor, como ator “na divina língua de Baco”, a qual se exalta mediante a recorrência também da
palavra “boca” e da palavra “coxa”: uma é a que beija, lambe,
morde e degusta; outra é a beijada, a lambida, a mordida, a degustada. Ambas em
rima toante também entoam ritmos e ritos profanos-sagrados:
o
poema fala do teu corpo
como se o tocasse
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca
como um canto bíblico
com louvor profano
Nessa
performance e performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um
erotismo entre o significante e o significado, sim, mas também entre página e
palco, palco e praça, praça e povo, a babel dos povos e a babel das palavras:
daí, tantos trocadilhos (troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flór do lótus” com a “flor do
lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o do “fauno”
com a “flauta”, o da “alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese”
com a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a verbal,
mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa. Eis o poeta trocando
com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos
outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi
Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta,
analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta
analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por
timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os
que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em
rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca
poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a
exemplo do diálogo poético de Clarice com Baudelaire. Mais ainda:
o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a
metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema
“Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética”
permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)”
se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o
poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade
do corpo se troca e vira o corpo da cidade. Assim, o poeta é – quando e
enquanto coisa.
No
meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas (como as de
Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé, Tanussi Cardoso,
Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo Valinho Alvarez,
Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo torto” de Artur
Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce, escritores também
engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não deixa, na qualidade de título de livro,
de repercutir o Retrato do artista
quando coisa (de
Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce). Do mesmo modo, não havendo menção (ao menos,
explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso Martinez
Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos sacro-promíscua –
de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura ocidental de outras
culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental com que a
palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande laboratório
da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente políticas.
Se
Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente falta de lógica,
lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de
sexualidade e sensualidade em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do
discurso adulto que se vê fragmentado e devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito-objeto já
não dá conta quando o humano se vê coisa
(não mais agente ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo
tempo). Como no Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é lamacenta,
cheia de líquidos e delírios: a seiva se expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora,
é a cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem,
acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já
citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página.
Por
outro lado, temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade
com Ulisses de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama,
livro, divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista quando
jovem”, vinda de Joyce. Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá
seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua
vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O
romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce),
personagem que vai aparecer novamente em Ulysses.
A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o
filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de
Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da
personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão
feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus
passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da
igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a
sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para
uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão.
Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona
definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias
artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.
Assim, Artur Gomes se obstina
pela ideia de confissão, mas de uma confissão dionisíaca. Primeiro, fazendo
suas Juras Secretas, suas
confidências sensuais, sexuais, eróticas, fulinaímicas. Em suma, suas sagaranagens (há algo de Joyce em
Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há em Artur Gomes, no sagarana dos três). Agora, em O poeta enquanto coisa,
arriscando-se a abandonar todo credo político-religioso paralisante, move-se –
avesso ao dogmático – no sentido de dançar o mitopoético, o dionisíaco. Daí, uma
Igreja Universal do Reino Zeus faça todo sentido na cosmogonia e
teogonia de Artur Gomes. Em primeiro lugar, como deboche diante de
quaisquer fundamentalismos. Em segundo lugar, como denúncia do que um Reino
de Deus pode roubar do político o vigor do poético, preferindo um louvor a
Dionísio a um Deus que não sabe dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma
poesia que roga
por um
poema
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus
da tua boca
arranhe os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor
assumo o risco
não sou demo
nem corisco
eu sou cantor
Iansã
é quem me lava
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda
eu sou o que
invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta
eu sou o que
interpreta representa
o que inventa
e desafora
o Anjo
Torto
graças a Zeus
a pedra e ao Machado de Xangô
a Capitã do
Mato Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da
reza
que o homem que se preza
nunca se
escraviza
com chicote de feitor
*Igor Fagundes é poeta, ensaísta,
doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor,
dentre outros, de pensamento dança (2018)
e Poética na incorporação (2016).
Macumbança (2020)