a voz
submersa
Assassinos. Assassinos.
Mataram um estudante.
Amanhã serão outros.
Precisamos reagir.
Ela vai se esgueirando.
As vozes a perseguem. Os gritos.
Corre-fugindo.
A cabeça lateja.
A caminhada é longa. Interminável.
Arfa. Para.
Toma fôlego.
A noite a envolve.
Luzes.
Os sons se diluem.
Acena para um táxi.
Rua Paissandu – diz.
E se recosta no banco.
Fecha os olhos.
Mamãe. Mamãe – suspira.
Horrível: o corpo, os gritos.
Mamãe.
Salim Miguel
A voz submersa é um romance em estado febril, um delírio instantâneo
desencadeado pela visão do corpo do estudante Edson Luis Souto, já sem vida,
sendo carregado por uma multidão indignada, que o deposita na escadaria da
Câmara Municipal na Cinelândia, no ano de 1968 que em 1984, quando Salim Miguel
originalmente lançou este livro, ainda não tinha terminado.
O próprio escritor presenciou a cena e tentou transformar o
que vira em reportagem, sem sucesso, depois em conto. Do duplo fracasso, desse
relato engasgado por anos, saiu a matéria bruta para este romance, e a voz
submersa de Salim soa viva na boca de
Dulce, a personagem protagonista. No livro é ela quem vê a cena e conta
o caso para a mãe ao telefone, mas sem nunca relatar de fato o que presenciou,
gaguejando em neuroses, remorsos inconfessos, lamentações sobre a própria vida –
o marido distante, as cunhadas que a odeiam, os filhos, a quem chama de pestes,
o pai morto.
Depois de um hiato de 29 anos sem publicar um romance – sua estreia
no gênero tinha sido com A rede, em 1955 -, Salim então já consagrado como contista, escreveu A voz
submersa em apenas quatro meses, datilografando convulsivamente por seis, sete
horas por dia, expurgando uma história encarcerada por 15 anos, uma ditadura
inteira.
No delírio dessa febre-romance, Salim produziu imagens
belíssimas, como quando narra um passeio-sonho de Dulce, que sai a rua e não
encontra ninguém, pega um ônibus sem cobrador ou motorista, entra no cinema
vazio e na tela vê contada a história do livro.
Dividido em partes, o romance tenta ver, analisar Dulce por
todos os lados, ângulos. Na primeira, ao telefone, a protagonista monologa com a mãe até parecer esgotar-se. Na segunda,
os outros, falam sobre ela: o marido, as cunhadas e os filhos expõem as fraquezas
e incongruências da protagonista.
Na parte final, mais curta e visceral, é o próprio narrador
quem discorre sobre o personagem. Afeiçoado e já prevendo a despedida breve,
confessa: “como reagirás diante do que virás”? (...) Temo por ti, que não podes
– ou não queres te ajudar.”
não vendo ilusões
diante da miséria
que assassina corações
Vampiro Goytacá
eu tenho muito mais que 25 mil palavras sem perguntas mais que 25 mil perguntas sem respostas eu tenho um presente às minhas custas um passado às minhas costas um futuro à minha frente muito mais que um instante no meu cérebro as mutações em pré-juízo judas o resto da cruz jesus cristo cortador de cana boi-pintadinho muito mais que além da mesa posta
uma minibio a partir de Suor & Cio
Artur Gomes é poeta, ator, videomaker e produtor cultural.
Tem diversos livros publicados,
entre eles : Suor & Cio - (MVPB Edições 1985
Couro Cru & Carne Viva – (1987)
20 Poemas Com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção Com Sabor de Campos – (Makondo Edições – 1990)
Conkretude Versus ConkrEções – 1994
CarNAvalha Gumes – 1995
BraziLírica Pereira : A Traição Das Metáforas (Alpharrábio Edições – 2000)
SagaraNAgens Fulinaímicas (Edições Du Bolso – 2015),
Juras Secretas (Editora Penalux, 2018)
O Poeta Enquanto Coisa (Editora Penalux – 2020 )
Pátria A(r)mada (Editora Desconcertos, 2019). Prêmio Oswald de Andrade – UBE-Rio – 2020
Pátria A(r)mada 2ª edição revista e ampliada – Desconcertos Editora (2022)
O Homem com A Flor Na Boca - Editora Penallux (2023)
Tem inédito:
Vampiro Goytacá/Canibal Tupiniquim e Da Nascente A Foz : Um Rio De Palavras (livro de memória)
Dirigiu a Oficina de Artes Cênicas do Instituto Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes-RJ de 1975 a 2002.
Em 1983, criou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira, com 9 edições realizadas em diversas cidades do Estado Rio de Janeiro até o ano de 1992.
De 1986 a 1988 foi assessor, no Departamento Municipal de Cultura de Campos dos Goytacazes-RJ, onde trabalhou na criação da Casa de Cultura José Cândido de Carvalho – implantada no distrito de Goytacazes.
Em 1989 criou o Festival de Música de Primavera, cujas primeiras edições foram realizadas pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, na Arena do Parque Alberto Sampaio e coordenou o Encontro Nacional de Poesia Em Voz Alta.
Em 1993, idealizou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira Mário de Andrade — 100 Anos — realizada pelo SESC São Paulo.
Em 1995 criou o Projeto Retalhos Imortais do SerAfim – Oswald de Andrade Nada Sabia de Mim, executado pelo SESC-SP em várias unidades na capital e pelo Estado.
De 1996 a 2016 foi um dos poeta convidados para dirigir Oficinas e realizar performances no Congress0 Brasileiro de Poesia, em Bento Gonçalves-RS
Em 1996 foi um dos 50 Poetas selecionados para o Projeto Poesia 96, realizado pelo Departamento de Literatura da Secretaria Municipal de Cultura do Estado de São Paulo - SP
Em 1999 criou o FestCampos de Poesia Falada, realizado até 2019 pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, em Campos dos Goytacazes-RJ onde foi Diretor de Projetos Especiais de 1999 a 2004.
Em 2002 lançou o CD Fulinaíma Sax Blues Poesia , com seus parceiros Dalton Freire, Luiz Ribeiro, Naiman e Reubes Pess.
De 2011 a 2014 dirigiu Oficina de Produção Cine.Vídeo no Sesc-Campos
Em 2012 foi um dos Artistas Brasileiros convidado para o Circuito Cultura Arte Entre Povos, realizados em cidades do Estado do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais
Em 2013 fez Performance Poética e dirigiu Oficina de Produção Cine.Vídeo na 7ª Feira do Livro de São Luiz do Maranhão.
De 2014 a 2016 Dirigiu Oficinas de Artes Cênicas no Sesc-Campos com a montagens dos espetáculos: Nos Tempos da Fotonovela, Uma Noite De Natal, Waterkis-Selecione Água e A Nossa Casa É Um Teatro.
Em 2017 Dirigiu Oficina de Teatro Multilinguagens no SINASEFE, seção Campos
Em 2018 e 2019 lecionou Poéticas, no Curso Livre de Teatro em Campos dos Goytacazes, com a realização do espetáculo poético teatral: LeminskiArte da Palavra Em Cena.
Em 2018 lançou o livro Juras Secretas, fez performance e dirigiu Oficina no Festival Transe Poéticas, realizado no Museu Nacional de Brasília-DF
Em 2021 fez curadoria para a Mostra Cine e Vídeo De Poesia Falada. realizada pelo SESC Piracicaba-SP.
Integrou a Comissão Julgadora do Festival Cine Urutu, realizado pela Prefeitura de Pindamonhangaba-SP
Com seu videopoema Goytacá Boy é um dos poetas que integram a Mostra Virtual de Videopoemas do Projeto Bossa Criativa, Arte de Toda Gente, realizado pela FUNRTE Rio.
Em 2022 realizou 7 edições do Projeto – Semana de 22 – 100 Anos Depois – Revirando A Tropicália na Casa Criativa Santa Paciência em Campos dos Goytacazes-RJ
Em 2022 lançou o livro Pátria A(r)mada no Sesc Piracicaba-SP e realizou performances realizadas no Largo dos Pescadores
Em 2023 realizou oito edições do Sarau MultiLinguagens, realizado no Museu Histórico de Campos e no Palácio da Cultura, realização da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima – Prefeitura de Campos dos Goytacazes-RJ
Em 2023 recebeu homenagem no Sarau Gente de Palavra, realizado na Livraria e Café Patuscada em São Paulo-SP, projeto coordenado pelos poetas/escritores: César Augusto de Carvalho e Rubens Jardim
Em março de 2024 realizou no Palácio da Cultura a primeira edição do Sarau Campos VeraCidade, realização da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima – Prefeitura de Campos dos Goytacazes-RJ
Atualmente é coordenador de cultura na Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima em Campos dos Goytacazes-RJ
vampiro goytacá
canibal tupiniquim
poesia muito prosa
viagens metafóricas por realidades reinventadas
não vendo ilusões
diante da miséria
que assassina corações
"Nunca fomos catequizados fizemos foi carnaval".
Oswaldo de Andrade.
Nunca fomos colonizados, fizemos foi Balbúrdia anti-colonial.
Sady Bianchin
Ou a gente se Raoni
Ou a gente se Sting
Luis Turiba
uma cidade sem memória não é uma cidade
Federico Baudelaire
Campos precisa acordar para voltar a ser
Rúbia Querubim
tocar-te por dentro lentamente calmamente como quem morde a maçã na boca da serpente e uiva mastigando a carne como sobremesa
Artur Kabrunco
o gosto da tua carne não conheço não me deste o endereço
Federika Bezerra
transverso anjo avessso atravesso as artérias da cidade águas do paraíba emporcalhadas de esgotos
Irina Serafina
como poesia devoro para matar a fome quando oro o prazer tem outro nome
Artur Gomes
absinto impossível te sentir mais do que já sinto
Pastor de Andrade
cidade veraCidade nossas angústias penduradas nos varais
Federika Lispector
viva a lira do delírio antropofágica paulistana metendo a língua desbragada nos bordéis de copacabana
Lady Gumes
o delírio é a lira do poeta se o poeta não delira sua lira não concreta
Artur Fulinaíma
desde os tempos de moleque para descascar carne de manga faca facão canivete arma branca de pivete nos quintais da cacomanga
EuGênio Mallarmè
não tenho papas na língua nem pastor me come as coxas eu sou do mar da tempestade beira mar é quem lambe as minhas ostras
Gigi Mocidade
eu sou o sangue
afro tupiniquim
que ainda
corre em minhas veias
sou a lama do mangue
a bio/diversidade
e
a genialidade desses traços
no lápis de Kevin Areas
arquitetura/poesia
enquanto arquitetos desenhistas desenhavam eu foto.grafava escrevia poesia muitas vezes a arquitetura do poema me vem em linhas fulinaímicas
sinuosas se em verso ou prosa não explico o que me importa é o ofício ao qual eu me dedico
por enquanto
vou te amar assim em segredo
como se o sagrado fosse
o maior dos pecados originais
e minha língua fosse
só furor dos canibais
veraCidade
por quê trancar as portas tentar proibir as entradas se já habito os teus cinco sentidos e as janelas estão escancaradas ? um beija flor risca no espaço algumas letras de um alfabeto grego signo de comunicação indecifrável eu tenho fome de terra e esse asfalto sob a sola dos meus pés agulha nos meus dedos quando piso na augusta o poema dá um tapa na cara da paulista flutuar na zona do perigo entre o real e o imaginário joão guimarães rosa caio prado martins fontes um bacanal de ruas tortas eu não sou flor que se cheire nem mofo de língua morta o correto deixei na cacomanga matagal onde nasci com os seus dentes de concreto são paulo é quem me devora selvagem devolvo a dentada na carne da rua aurora
balburdiar eis o verbo
ver pra crer
:
difícil de falar
ótimo de fazer
amor
balbúrdia gozosa
jorrando poesia
enquanto goza
fazer balbúrdia
jogo de cartas
sem baralho
:
dá prazer
mas dá trabalho
Balbúrdia PoÉtica
numa dessas noites boêmicas de dois mil e dezenove em bares ex-tintos da lapa na cia de sady bianchin fil buc e marcela giannini ouvimos do indesejado que dentro das universidades federais era uma tremenda balbúrdia mal sabia ele que sua fala chegaria aos ouvidos de quem não cala imediatamente como uma prova dos nove pensamos uma Balbúrdia PoÉtica a favor da ética
e contra todo aquele que nos provoca náuseas neo-nazistas que nos fazem mal e agora transformado em manifesto de resistência sócio política cultural contra todo e qualquer tipo
de bandidagem oficial
seja ela municipal estadual ou federal
MINAS NÃO
HÁ MAIS
Por galerias subterrâneas, perdidas
de alma e de tino, a inaudita humanidade
se faz e refaz, constante
concernente ao seu destino final.
E é assim, se, pela arte
se vai bamburrar
a peleja, do bem, contra o mal.
Justo, a vida não se curva, ao prosaico ditante.
Segue a poética seca, pedra angular, de João Cabral
onde a revelação não está no todo, já se sabe
está na parte, na flor do cabelo, da mulher amada
que mergulha os seus dedos, e, suavemente
a mão, até a ferida arruinada.
A sorte está no riso da criança, uma, igual a todas
em toda beleza existente
e, também, nas mãos nuas, dos amantes
dadas ou ausentes.
A marca humana está nos rostos
que passam desapercebidos
e se acumulam, insólitos
colados e esquecidos, olhos tristes
olhares em mirada, olhos
de campo de concentração.
Guimarães Rosa, em Cordisburgo
descubrindo o Nonada.
Esquecimento. Ela, a
vida, corre
e tem o seu tempo próprio, no paradoxo
da permanência, na loja, onde as mercadorias
não se vendem e são repositórios, memorabília.
Os sapatos são trocados
para suavizar os passos
na estrada de Minas, pedregosa.
Para onde, nos levam?
Disso, não se sabe nada.
A fala galega do povo, revela a história
e as intenções sobrepostas, irreveladas
contadas a ouvidos moucos, aos brados
de bocas surdas.
A eternidade, sem os porquês
o abandono, ausente o drama telúrico
de um Deus bastante.
Intensidade brutal, corte na carne
sem profilaxia.
Os desvãos infectos, aqui, no bordel
ou na Palestina, sem direitos de ser.
Não se rouba, aquilo que se acha
sob as franjas da terra
ou sobre a lauta mesa do jantar.
Há o que vai embora, no ultimo trem de carga
e a solidão de quem fica, esperando
alguém, na estação.
A cidade deserta, no correr da madrugada
ausente, a noite e o dia.
A cidade sobressalta, o excesso barroco
e a falta. A torre da
igreja, o som do sino
a curva da rua, a chuva, o cheiro de terra
a fome de mistério, a pontuação da musica
incidente, sacra, o mantra
mas sem negação karmica
e, enfim, a verdade, que, por si só
reverbera, no inescrutável do coração.
Ao Divino Espírito Santo, dedico a eterna canção
evocando o sagrado, que existe no meio das pernas
e no tanto da nossa emoção.
Gente humana, nas favelas, pelas ruas, pelourinho
gente que sobrevive tanto, mesmo que erre tanto.
E como tanto, esta gente erra
pelos quatro cantos da terra
como chineses, nos cais.
Os enfadados franceses
as prostitutas e tais
as moças com filhos, no colo
negociando os seus preços
(com os dentes dourados)
sorrindo, desabridos
toda a riqueza da vida, auferida.
As putas, ainda assim, são
as melhores, entre todos nós.
Mãos, ainda insistentes, pairam
barrocas, em suspensão, devotadas ao sacrifício
maculadas nas cicatrizes, nas gastas feridas
e na esperança.
A equação que une carne, pão e pano
qualquer que seja a ordem
ou as irrupções devidas
entra ano e sai ano.
Entropia desesperada, pelos becos
pelos bares
(quem diria, que um dia
tudo já foi oceano).
Anseios, nos portais, a roda dos enjeitados
o abandono da veleidade
montanhas de ferro, exaurido
estalactites/estalagmites
sem água, ponto terminal
formando o contexto do enredo
sugestões para arte e para a prosa
- o amor, a dor e a saudade
prescindindo da rosa, pela expiação
pelo inconfidente degredo.
Montanhas impassíveis, caminhando
para o mar, no longe
desfeitas em desejos atávicos
poeira, em sal, em segredo.
Ricardo
Sant’Anna Reis
art pop
macunaíma
ilumina o lobisomem
na selva de new York
o rato rou ea roupa
do gênio da art pop
nosso samba popular
não precisa ser estar
cantando rock
geleia
geral
a coisa por aqui
não mudou nada
embora sejam outras
siglas no emblema
espada continua a ser espada
poema continua a ser poema
pessoa
não tenho pretensões
de ser moderno
nem escrevo poesia
pensando em ser eterno
veja bem na minha língua
as labaredas do inferno
e só use o meu poema
com a força de quem xinga
Artur
Gomes
Do livro Couro Cru & Carne Viva
1987
Isso é um poema ou uma navalha?
Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema. Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”. Preste só atenção em Drummond .
“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira”.
Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.
Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.
Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra; re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.
Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.
O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os poemas navalha de Artur Gomes certamente não terão piedade de você.
Aristides Arthur Soffiati
Campos, agosto de 1987